domingo, dezembro 10, 2006

Volver (2006)



Raimunda (Penélope Cruz) retorna para casa e encontra o marido morto na cozinha, esfaqueado pela própria filha, a qual alega que se defendia do pai, que queria violentá-la. Enquanto isto, Sole (Lola Dueñas), sua irmã, é assombrada pelo "fantasma" da mãe. Este é o enredo da mais recente tragicomédia de Almodóvar.
O mestre espanhol brinca com o espectador, iniciando seu filme com todas as características de um dramalhão mexicano, no qual todos os elementos de sobressaem negativamente, a fotografia, a trilha sonora, a atuação. Tudo é excessivo, demasiadamente marcado, catastrófico. Mas logo o clima é atenuado pelo peculiar humor de Almodóvar e a tragédia se transforma da possibilidade de mudança na vida de Raimunda e sua filha, que, através da dor e da culpa, estabelecem um novo marco zero.
"Volver" mantém a linha tradicional do diretor, protagonistas femininas fortes, a presença da morte, da finitude, dos limiares, o absurdo do mundo, a prostituta, os recalques duma infância triste, os abusos. O mundo de Almodóvar é único, porém, coletivo. Único, porque visão sua; coletivo, porque, apesar da estranheza e da singularidade, todos possuem histórias absurdas em suas famílias, todos possuem seus traumas e seus demônios sepultados nas profundezas do subconsciente.
Penélope Cruz é uma atriz mediana, mas que engrandece nas mãos do diretor espanhol. A violência da trama consegue obter uma qualidade que até a própria Penélope deve desconhecer e, no final das contas, ela brilha. Carmen Maura, no papel da mãe de Raimunda e Sole, é um atributo à parte. Tão lírica em sua dramaticidade, cômica em sua desgraça.
Enfim, elogiar Almodóvar é como chover no molhado. Seus filmes foram feitos para serem vistos e nos emocionarem; para eles, as palavras são poucas e falhas.

sábado, dezembro 02, 2006

49 up (2005)

Um professor de filosofia costumava questionar, durante meu curso de graduação, onde estava a criança no homem e onde estava o homem na criança. Esta pergunta era retórica, visando demonstrar a interrupção que havia entre estas duas fases da vida, que um não estava contido no outro.
O filme de Michael Apted, "49 up" o contradiria, mostrando que ambos, criança e adulto, são complementares e nunca deixam de dialogarem.
O projeto é ambicioso, retratar a vida de uma dúzia de pessoas, começando desde os sete anos de idade e acompanhando-as a cada outros sete anos. Vemo-as em seus quatorze, vinte e um, vinte e oito, trinta e cinco, quarenta e dois e, finalmente, em seus quarenta e nove anos. Um projeto de uma vida inteira, retratando a vida inteira de outras pessoas.
O campo de pesquisa abarca desde as perspectivas sobre o futuro, o que tais pessoas planejavam para seu futuro próximo e distante, até aspectos pessoais, como relacionamentos, sexo, filhos e frustrações. O mais surpreendente é constatar como certas crianças possuíam claramente a diretriz pela qual conduziriam suas vidas, enquanto outras, com o passar dos anos, vagam de trabalho em trabalho, de divórcio em divórcio, só encontrando um rumo após atingirem a maturidade.
A proposta deste documentário era a de retratar a Inglaterra no ano 2000, mas, por abordar um tema tão delicado como o passar dos anos e a proximidade da morte, ele acaba se tornando um retrato do ser humano em todas as eras. E, mais do isto, "49 up" é um espelho terrível da nossa própria história, é um estímulo a olharmos nosso passado e relembrarmos nossos sonhos de crianças e vermos como falhamos na maioria deles; é um convite a revermos nossos sonhos presentes e descobrirmos o que estamos fazendo de concreto para torná-los reais. Por isto, é triste. Força-nos a constatar que fracassamos na maior parte das vezes e que o tempo passa rápido e ao que demos valor nem sempre era o mais importante.
"49 up" é melancolicamente maravilhoso e, para mim, um dos melhores documentários que já assisti. Talvez para outro espectador, a vida dos outros seja frívola, mas nada nos diz tanto respeito quanto nossas próprias vidas e um filme que nos faça refletir sobre ela não é algo que assistimos todo dia.

domingo, novembro 19, 2006

Borat (2006)




O jornalista cazaque Borat Sagdyiev é enviado aos EUA para realizar um intercâmbio cultural, com a proposta de aperfeiçoar seu magnífico país.
A idéia é despretensiosa e poderia muito bem se enquadrar num filme sério, documental ou dramático; mas "Borat" é o extremo oposto de tudo isto, com exceção do caráter pseudo-documental.
O intercâmbio cultural EUA-Cazaquistão é, na verdade, a descoberta de que os valores sempre herdados dos norte-americanos não são, nem devem ser, valores universais. A chegada de Borat é a constatação de que as coisas podem ser diferentes e, mais do que isto, que o diferente é realmente muito engraçado.
O Cazaquistão de Borat não é um país fatual, poderia ser o Uzbequistão, alguma ilha da Polinésia ou até mesmo o Brasil, não importa, o que Borat tenta nos mostrar é uma nova visão, completamente revolucionária, de como tudo poderia ser diferente, para pior ou melhor. O choque cultural entre o jornalista, repleto de preconceitos, e grupos de feministas, famílias "de bem" sulistas, negros em áreas pobres dos EUA, judeus, religiosos é brutalmente cômico. Ele é aquele rapaz sem noção alguma, sem educação, sem limites e, pior do que tudo, que não tem consciência do seu deslocamento.
Seguindo a linha dos filmes contra os EUA, o comediante Sacha Baron Cohen ataca, por sua vez, não a política norte-americana, mas sua moral hipócrita, preconceituosa e xenófoba.
Incrivelmente, "Borat" (cujo título completo é "Apredizado cultura na América para o benefício da gloriosa nação do Cazaquistão") galgou seu espaço e se tornou o primeiro lugar em bilheteria nos EUA. Talvez uma demonstração de que há vida inteligente no país e que consegue achar graça até mesmo dos patéticos valores que herdou.
Dificilmente se pode prever a recepção deste filme no Brasil, especialmente porque seu ataque possui um alvo específico. Mas, mesmo assim, "Borat" é incrivelmente engraçado e sua falta de "normalidade" seria cômico em qualquer país dito civilizado.
Seguindo o molde dos "road movies", "Borat" questiona quase tudo, menos o paradigma hollywoodiano de três atos: apresentação, confrontação, desfecho. Uma prova de que nem sempre se pode jogar tudo fora.

Babel (2006)




Existem filmes que você sabe que serão bons mesmo antes de tê-los assistido. Este é o caso de "Babel".
Qual é a relação entre pastores marroquinos, uma família norte-americana, imigrantes mexicanos e uma adolescente surdo-muda japonesa?
Como em "21 gramas", o diretor mexicano Alejandro González Iñarritu abusa destas conexões mirabolantes e implícitas, as quais, acidentalmente, conduzem a desfechos terríveis.
Uma família de pastores de cabras, numa região árida e pobre do Marrocos, compra um rifle com a intuito de espantar os chacais que estão dizimando o rebanho. Acidentalmente, eles disparam contra um ônibus de turismo e atingem Susan (Cate Blanchet), esposa de Richard (Brad Pitt). O governo dos EUA imediatamente associa este incidente com um atentado terrorista, criando comoção mundial e dificultando o resgate de Susan.
Esta poderia ser considerada como a trama principal de "Babel". Porém, sem estar em menor grau de importância, há a história de Amelia, a babá dos filhos do casal Susan e Richard, que, não tendo quem cuidar das crianças, leva-as consigo para o México, para o casamento de seu filho; no Japão, Chieco, uma adolescente frustrada por não ter namorado, complexada por sua deficiência auditiva, procura freneticamente por um parceiro que queira tirar sua virgindade; por fim, o drama da família marroquina, desesperada pela culpa do disparo e pelo medo da punição. Assim como o título sugere, apontando para sua proximidade com a fábula bíblica da Torre de Babel, construída pelos homens para se aproximarem de Deus e como este, enfurecido com a soberbia dos homens, decidiu confundi-los, fazendo-os falar idiomas diferentes, para que não pudessem se entender e concluir o intento. "Babel" é uma Babel de idiomas, quase inteiramente legendado (fato comum no Brasil, mas raro nos EUA), traduzindo marroquino, espanhol e japonês. Se considerarmos como verídica a fábula, o filme de Iñarritu nos sugere que até hoje, sabe lá quantos mil anos depois, ainda não conseguimos nos entender, ainda estamos perdidos em meio a tamanhas diferenças, lingüísticas, culturais e políticas.
"Babel" é um filme extraordinário, daquela safra de produções que sutilmente apresenta suas posições, não como defesa de tese, mas mesclada com as expectativas e frustrações humanas. É através dos atos humanos que nossas fraquezas transparecem e atos inocentes e não-intencionais acabam se tornando, como na teoria do caos, eventos catastróficos e incontroláveis.
O filme de Iñarritu é uma defesa, ao mesmo tempo que repleto de melancolia, das diferenças. Simplesmente um dos melhores filmes de 2006.

sábado, novembro 18, 2006

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001)




"Somente a dor é positiva", dizia Schopenhauer. Talvez esta seja a melhor explicação para o grande mistério envolvendo a crítica: por que os críticos preferem malhar um filme ao invés de elogiá-lo?
A crítica deveria ser, a princípio, a análise das partes constituintes de determinado objeto e a avalição de como tais partes se articulam. Porém, comumente, a crítica se desenvolve como a constatação de que a articulação é falha e como o objeto é, por isso, deficiente.
Isto é inevitável. Quando se trata de filmes ruins, além de ser muito mais fácil de se falar sobre eles, há um prazer imanente em atacá-los. "Somente a dor é positiva" e o desprazer que certo filme nos causa é o solo sobre o qual obtemos algum prazer, ao apresentarmos suas falhas.
Talvez seja por isto que demorei tanto tempo para criticar "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain". Assisti a ele umas dez ou doze vezes e sempre me encanto com este filme.
A trama é despretensiosa: Amélie descobre, escondida há quarenta anos, na parede de seu banheiro, uma caixinha de brinquedos. Ela decide que devolverá tal descoberta ao dono e, se isto mudar a vida dele, ela, daquele momento em diante, dedicará sua vida a ajudar as pessoas.
Tudo neste filme é encantador, começando com a intérprete de Amélie (Audrey Tautou), passando pela trilha sonora, pelo roteiro magnífico, pela direção de arte e, principalmente, pela fotografia. "Amélie" é uma obra de arte em último sentido, proporcionando prazer estético pelo maravilhamento que causa. É daqueles filmes que se ama - inclusive chega a ser cultuado - ou se odeia, mas não há quem fique indiferente diante dele.
O diretor Jean-Pierre Jeunet atingiu o ápice de carreira neste filme (até que prove o contrário!); preparou-se para ele em "Delicatessen" e o imitou em "Eterno Amor"; "Alien, A Ressurreição" é um corpo estranho...
É difícil saber se "Amélie" um dia se tornará um clássico do cinema, ainda mais em nossa época, quando tudo é tão efêmero que já nasce ultrapassado, mas, certamente, é uma obra-prima de beleza e encantamento.

domingo, novembro 12, 2006

Pleasantville - A vida em preto e braco (1998)


O enredo não poderia ser mais estúpido:
Dois irmãos, ao brigar pelo controle remoto da TV, David (Tobey Maguire) para assistir a reprise de uma série da década de 50, Jennifer (Reese Whiterspoon) para assistir a um show na MTV com seu ficante, são transportados para o interior daquela boçal série.
No entanto, se o espectador sobreviver aos primeiros quinze minutos e ultrapassar esta historiazinha que poderia pertencer a um filme da Xuxa ou dos Trapalhões, ele será recompensado com um belíssimo desenvolvimento. Posso confessar que este filme está entre um dos meus preferidos pela inteligência dos questionamentos que incita.
"Pleasantville", a cidade fictícia que dá nome ao filme, é perfeita, entendendo-se perfeição como o extremo da moralidade hipócrita que proibe sexo pré-marital, capacidade de reflexão individual, desejo de revoluções e mudanças e liberdade de expressão. Nesta cidade, os casais dormem em camas separadas, os filhos são exemplos para a sociedade, o time de basquete jamais perde, as donas-de-casa estão sempre com o jantar ou os canapés para as visitas prontos e a única função dos bombeiros é resgatar gatos em árvores.

Dois paralelos podem ser traçados desde "Pleasantville - a vida em preto e branco":
O primeiro deles é com o Gênese. Pleasantville é encarada como um paraíso, onde não há pecado e tudo flui em abundância. Todos levam suas vidas numa pacata inconsciência e a existência é "agradável". Todavia, por um ato miraculoso, através da figura do reparador de TVs que dá a David e Jennifer o controle remoto mágico, os dois irmãos começam a modificar a alienada existência da cidade, dotando-a de cores e vida.
Alguns teóricos, principalmente de correntes esotéricas, defendem que o pecado original, aquele que fez com que Adão e Eva fossem expulsos do Paraíso, trata-se do conhecimento do sexo. A "árvore do conhecimento" seria, na verdade, o conhecimento do ato sexual. "Pleasantville" corrabora com esta tese, pois é, através do sexo, instigado por Jennifer (que não era nenhuma santa no mundo real), que as verdadeiras mudanças começam. Ao comerem o fruto proibido, uma série de atitudes muda entre os cidadãos da cidade e, em pouco tempo, o "agradável" cede lugar ao ciúmes, ao adultério, ao medo, à paixão.
O segundo paralelo é com a própria história recente dos EUA, com a revolução artística e sexual da década de 50, quando as fachadas do puritanismo desabaram. O advento do rock'n'roll, dos movimentos libertários e revisionistas mudou a mentalidade de um país preconceituoso e bitolado.
O histórico do diretor, produtor e roteirista Gary Gross não é dos melhores; antes e depois deste filme sua filmografia é inexpressiva. Não é possível saber se ele leu Bataille, Foucault e toda a geração de estruturalistas que põem a sexualidade e a arte em primeiro plano como motores de transformação. Provavelmente não. Mas, inconscientemente, como as personagens de seu filme, Gross atinge um extraordinário patamar de lucidez ao retratar a reação retrógrada de discriminação e censura por parte dos homens "decentes" da cidade.
Mas as mudanças, quando começam, dificilmente podem ser detidas e Pleasantville jamais poderia voltar a ser o que era.
O personagem mais intrigante, ao meu ver, é Bill Johnson (Jeff Daniels), o dono da lanchonete, cuja maior alegria é a expectativa do Natal, quando ele pode pintar a vitrine da lanchonete com temas natalinos. Ele é o chamado do artista, de alguém que possui um novo olhar e, para isso, precisa romper com as normas sociais. Algumas das mais belas cenas do filme envolvem a presença de Bill e David, ambos descobrindo o que é a verdadeira liberdade.
"Pleasantville - a vida em preto e branco" é a prova de que uma má idéia pode ser o germe de uma maravilhosa execução. Um elogio à liberdade e a tolerância. Um conclame ao respeito às diferenças e à necessidade de constante revisão de nossos conceitos. Estimulando-nos a pôr um pouco de cor em nossas existências pacatas.

quinta-feira, outubro 26, 2006

O Plano Perfeito (2006)



O papel do crítico, mais do que estabelecer juízos de valores sobre determinada criação artística, é fingir total imparcialidade em seus comentários. O crítico não é aquele que gosta de algo, é aquele que possui argumentos para justificar o fato de gostar de algo.
Durante todo o tempo em que escrevo neste blog, já defendi filmes que não gostei, porque eram bons filmes, e já ataquei filmes que me agradaram, mas que eram filmes ruins. No entanto, se há um ator no qual confio cegamente e que dificilmente me decepciona, este é Denzel Washington. Ele já caiu na armadilha que muitos atores hollywoodianos caem, acreditar em um péssimo roteiro, como em "Assassino Virtual" ou "Por um Triz", mas o conjunto de seu trabalho é excepcional.
Una agora um excelente ator com um ótimo diretor, Spike Lee, um roteiro engenhoso, e você terá "O Plano Perfeito".
Este filme é um daqueles que, se você contar um pouquinho mais do que deve, estraga a surpresa de quem ainda não assistiu. A trama envolve o assaltante de banco Dalton Russell (Clive Owen), o banqueiro bilionário Arthur Case (Christopher Plummer) e o detetive encarregado de salvar os reféns, Keith Frazer (Denzel Washington). Logo no começo do filme, Dalton Russell utiliza a fórmula básica da narração para compor sua história: quem, o que, por que, quando, onde e, o mais importante, como. Russell possui, segundo o próprio título sugere, o plano perfeito para roubar o banco e não ser capturado; este é o enredo.
Spike Lee, que já foi o maior representante do cinema independente de Nova York, tem dado uma guinada em sua carreira nos últimos anos. Ele não abandonou completamente o debate sobre a condição racial nos EUA, mas, sem dúvida, este deixou de ser o tema para seus filmes. Em "A Última Noite", o protagonista é um traficante descendente de irlandeses (Edward Norton); já em "O Plano Perfeito", apesar de o personagem principal ser um detetive negro e haver uma série de situações cômicas relacionadas ao preconceito racial ou religioso (como o Sikh sendo discriminado por ser "árabe"), o foco envolve muito mais pecados históricos pretéritos do que situações conflituosas contemporâneas. Parece que Spike Lee percebeu que cinema entretenimento também pode ser crítico, além de atingir um público muito maior.
"O Plano Perfeito" mantém o espectador intrigado até o fim, sem decepcioná-lo com explicações estapafúrdias ou escapadas miraculosas. Às vezes, o óbvio é o mais difícil de ser percebido.

domingo, outubro 08, 2006

Capote (2005)




A Organização Mundial de Saúde denomina a psicopatia como "distúrbio da personalidade antisocial". Entre algumas características de um indivíduo com tal patologia encontramos: falta de consideração com o sentimento alheio, atitudes irresponsáveis e desrespeito às normas sociais, incapacidade para manter relações duradouras, baixa tolerância a frustrações, incapacidade para experimentar culpa, capacidade de culpar os outros ou de oferecer racionalização plausível para explicar as causas que o conduziram ao conflito social.
Segundo tal classificação, fica difícil saber, baseado em como o filme "Capote" se desenvolve, quem são os verdadeiros psicopatas, se são os responsáveis pelo assassinato de uma família no Kansas, ou se é Truman Capote, o jornalista cobrindo este crime.
A obsessão de Capote para escrever o livro que mudará os rumos da escrita na segunda metade do século XX, o clássico "À Sangue Frio", é tão ou mais chocante do que os assassinatos. Manipulando pessoas, tentando adiar a provável execução dos criminosos, menosprezando seus amigos, Capote é o retrato do gênio que se crê acima das convenções sociais e do restante dos pobres mortais.
O filme possui um desenvolvimento extraordinário, acompanhando passo a passo a composição da obra literário-jornalística, ao mesmo tempo em que mostra a dificuldade do autor em extrair dos criminosos o mais importante, a descrição de como eles mataram a família.
A atuação de Philip Seymour Hoffman é brilhante e o Oscar por ela recebido foi mais do que merecido.
"Capote" é o típico filme que, ao tentar homenagear uma figura pública, acaba denegrindo sua imagem. Mas, apesar do asco que o personagem Capote nos causa, ainda é uma obra excepcional.

terça-feira, outubro 03, 2006

As Torres Gêmeas (2006)



Quando surgiu o rumor de que Oliver Stone dirigiria um filme sobre o atentado ao World Trade Center, logo o público americano se escandalizou - um cineasta com filmes polêmicos no currículo, como "Platoon" e "JFK - A Pergunta que não quer calar", jamais se sujeitaria a abordar este tema de maneira não-revisionista.
No entanto, todos se impressionaram com a sutileza do tratamento de Stone em relação ao assunto, ao invés de intrincadas teorias conspiratórias ou críticas aos imperialismo norte-americano, "As Torres Gêmeas" focaliza a história de dois policiais nova-iorquinos designados para auxiliar a evacuação das duas torres do World Trade Center, imediatamente após elas haverem sido atingidas pelos atentados terroristas, no inesquecível dia 11 de setembro de 2001.
Não se trata de um documentário (ou de uma ficção documental), não temos uma visão global do evento, mas sim o recorte particular daqueles indivíduos que não sabiam no que estavam se metendo e tampouco as conseqüências das ordens que obedeciam. Assim como grande parte do mundo, aqueles dois policiais, mais do que protagonistas, eram apenas espectadores de um inacreditável ato de terror.
Apesar da orientação piegas do filme, com vários flashbacks realizados pelos personagens John McLoughlin (Nicholas Cage) e Will Jimeno (Michael Pena), relembrado momentos felizes em família, e um chororô interminável, os noticários norte-americanos, pouco antes da estréia do filme nos EUA, apresentavam enquetes como:
"Você levaria seu filho para assistir a este filme?"
Demonstração de que, por detrás da aparente normalidade de Nova York cinco anos depois, o atentado ainda é uma chaga aberta no coração dos americanos.
A própria recusa de Stone em problematizar o tema, em questionar os fundamentos dos fundamentalistas que perpretaram esta barbárie (se eles possuem algum de fato, isto é uma outra questão), em tentar descobrir porque os EUA é tão odiado ao redor do mundo, é uma declaração de que os americanos possuem uma inclinação para posarem de vítimas.
Mas as coisas parecem estar mudando. No último dia 11 de setembro, quando as pessoas se reuniram ao redor do enorme buraco deixado pelas torres, muitos clamavam por respostas, sendo a principal delas: "Por que os EUA atacaram o Iraque, quando os responsáveis pelos atentados eram fundamentalistas islâmicos patrocinados, principalmente, pelo regime Talibã do Afeganistão?"
Já se falou, inclusive, em indicação ao Oscar. Ainda é cedo para este tipo de previsão, mas com certeza há muitas produções melhores em cartaz por aí, e bem menos melodramáticas.

Também pode ser lido em

www.adorocinema.com.br

sexta-feira, agosto 18, 2006

Disque M para Matar (1954)




“Toda trama de mistério deve começar com um assassinato”.
Este é o mote do Gotham’s Writers Workshop, uma das mais reconhecidas escolas de escrita dos EUA.
Felizmente, Hitchcock não é tão previsível. Desde a escolha do roteiro, a fotografia, o elenco e a edição final, o trabalho deste mestre do suspense é impecável e, o mais crucial, imprevisível.
Em “Disque M para matar” não assistimos a um assassinato como todo manual de mistério sugere; pelo contrário, vemos um suposto feliz casal e um famoso escritor de romances policiais desembarcando em Londres. Tudo na mais trivial normalidade, quando descobrimos que Margot Wendice (Grace Kelly) teve um caso com Mark Halliday (Robert Cummings), mas que não haveriam de mantê-lo, pois Margot se arrependeu, Tony Wendice (Cary Grant Ray Milland), seu marido, havia mudado e ela tentaria ser feliz com ele.
“Disque M para matar” não começa com um assassinato, mas sim com o planejamento de um. Tony sempre soube do caso de sua esposa com o escritor; durante um ano, imaginou todas as maneiras possíveis de se vingar e, agora, ele tinha um plano e um álibi perfeito. Com a ajuda de um antigo colega de escola, ele explana como o assassinato de sua esposa deverá se suceder, tudo nos mínimos detalhes; perfeito, com a precisão de um relógio suíço.
Mas como o próprio escritor de mistério revela, durante uma conversa, crime perfeito só existe na literatura. O plano de Tony Wendice tem tudo para dar errado...
Subvertendo todos os princípios de um filme de suspense, Hitchcock demonstra que as regras não estão aí para serem idolatradas cegamente; ele revela que para o homem de gênio, sempre há uma alternativa original e surpreendente para realizar algo, não basta ser um cordeirinho pastando confortavelmente em meio ao rebanho. Não foi seguindo a manada que Hitchcock se tornou o mestre do suspense: foi ousando e rompendo os limites, características em extinção no cinema contemporâneo.
Quando grande parte das produções do cinema parecem querer insinuar que não há mais o que ser feito, que as regras devem ser sempre seguidas para obter um resultado satisfatório, os filmes clássicos dos grandes mestres nos provam o contrário, que é possível sim transcender o lugar-comum, fazer algo melhor, contar uma boa história e sem precisar de grandes recursos técnicos ou orçamentos multimilionários.
“Disque M para matar” não está na lista dos mais cultuados filmes de Hitchcock, mas certamente é diversão e tensão garantidas para quem gosta de uma boa história policial.

domingo, junho 04, 2006

Pequeno estudo sobre O Código Da Vinci (2006)



Pensei muito antes de assistir a "O Código Da Vinci".

A experiência com o livro foi frustrante. Graças a um defeito meu que me impede de ler livros que me entendiam, mal passei da metade da obra de Dan Brown.

Quando o filme foi lançado, uma curiosidade natural me impeliu a querer vê-lo, porém, ao folhear o roteiro ilustrado - lançado nas livrarias no mesmo dia em que o filme estreou -, tal desejo diminiu. A crítica feita por conhecidos, que preferiam a obra literária à cinematográfica, também influenciou na decisão em não assistir ao filme.

Todavia, assim como em "Harry Potter", senti-me na obrigação de ver para crer. Se já havia achado o livro ruim, o que pensaria do filme? Não seria este um dos raros casos em que a adaptação superaria o original? Não estaria eu partindo do pressuposto intelectualóide de que todo best seller é, por natureza, uma porcaria?

O Enredo
A trama todo mundo - a não ser que seja habitante de outro planeta ou um completo alienado - conhece: um simbologista americano, Robert Langdon (Tom Hanks), é chamado pela polícia judiciária francesa para comparecer ao Louvre, local onde o curador do museu foi assassinado. Logo descobre que ele é o principal suspeito da polícia e, com a ajuda de uma criptologista da polícia e neta da vítima, Langdon tenta resolver um enigmático quebra-cabeça histórico.
A repercussão que a obra de Dan Brown teve no mundo, principalmente no âmbito teológico, também não é novidade para ninguém. Ao sustentar a hipótese de que Jesus foi casado com Maria Madalena e de que, deste matrimônio, resultou uma linhagem, Dan Brown arrebanhou fãs eufóricos - que percorrem os mesmos locais de Langdon em busca de sua investigação pessoal - e inimigos mortais - a Igreja, alguns historiadores, políticos bitolados, ácidos críticos literários.
Dan Brown não foi o criador desta idéia; deve muito a Henry Lincoln, jornalista da BBC, que primeiro elaborou a hipótese de que, durante o curso da História, existiu um grupo de guardiões da linhagem de Jesus e de que notórias figuras, como Sir Isaac Newton, Leonardo Da Vinci, Claude Debussy, foram grão-mestres desta misteriosa ordem secreta.
No entanto, apesar de dever a idéia a Lincoln, "O Código Da Vinci" não se trata de um plágio, pois, se assim fosse, qualquer obra de ficção que abordasse algum tema histórico e/ou teoria seria um plagiador. O livro/filme de Dan Brown não é nada original, mas também não é uma cópia.

Apenas uma ficção
Os leitores ocasionais, os mesmos que se deslumbraram com a obra de Brown, possuem dificuldade em compreender a relação da ficção com a realidade.
Contudo, a comoção global que "O Código Da Vinci" causou demonstra que não apenas os leitores de fim de semana têm esta dificuldade, mas que até mesmo aqueles reputados como esclarecidos - teóricos, teólogos, apresentadores de TV.
A avalanche de livros e programas televisivos visando "decifrar", "quebrar", "desvendar", "analisar" o "Código Da Vinci" é a prova cabal de que as pessoas não sabem fazer tal diferenciação.
Ficção não é sinônimo de mentira, como geralmente se pensa. Uma obra de ficção é simplesmente aquela que é regida por regras próprias, independente da realidade.

O que isto quer dizer?

Numa obra de ficção, Jesus pode ser o filho de Deus, um camponês revolucionário, um profeta louco, casado, viúvo, ou qualquer outra coisa, desde que a estrutura da obra suporte esta idéia. Ela não precisa estar de acordo com a realidade dos fatos, já que ela é uma metarealidade.
Por isso, atacar uma obra ficcional elegando ser ela mentirosa é tão absurdo quanto defendê-la dizendo ser ela verdadeira.
Uma obra de ficção não é verdadeira nem falsa; o Jesus de Dan Brown é um personagem literário subtraído da história, mas não se trata do "verdadeiro" Jesus histórico.
Os responsáveis pelo devastador sucesso do livro são aqueles que não conseguem fazer esta distinção, entre eles o próprio Dan Brown.

Mas qual é o problema?
Por outro lado, enfatiza-se que a revelação do "verdadeiro" estado civil de Jesus poderia abalar as estruturas da Igreja.
A Igreja Apostólica Romana passou por dificuldades muito maiores do que esta em sua trajetória e ainda está por aqui, claudicando, mas viva. Martinho Lutero causou mais estragos na estrutura clerical do que uma mera obra de ficção poderia fazer. Dan Brown, seus leitores e seus detratores estão supervalorizando o impacto que "O Código Da Vinci" pode causar na ortodoxia e não me espantaria se dentro de cinco ou dez anos ninguém mais se lembrasse deste furor todo.
Além disto, qual seria o problema se Jesus fosse realmente casado? Em que isto prejudicaria a fé dos milhões de cristãos? Será que se ele fosse eunuco também haveria esta mobilização estrondosa?

J. D. Crossan, renomado pesquisador da Bíblia, afirma que podemos obter poucas certezas sobre a vida de Jesus a partir das fontes que possuímos: Jesus era um galileu, viveu durante a administração romana, pregou para os pobres, foi crucificado e seu movimento perseverou após sua morte.
Apenas isto...

Todo o resto está sujeito a dúvida; todo o resto não passa de mera especulação; todo o resto é hipótese.

Méritos e defeitos do filme
"O Código Da Vinci" é um filme cansativo.
As divagações históricas e os flashbacks são interessantes, porém quebram o ritmo da trama e se tornam morosos.
Há aqueles que adoram conspirações, mas quando todos fazem parte desta conspiração, excetuando os protagonistas, a história fica inverossímil.
A teoria literária tende a dividir os personagens em duas categorias: os planos, que não possuem vontade própria e se movem sob força das circunstâncias; e os redondos, personagens completos, que possuem motivações individuais, que movem a história de acordo com suas características.
Um exemplo de personagem redondo no cinema é o Dr. Richard Kimble, de "O Fugitivo". A mudança em sua vida - o assassinato de sua esposa e sua posterior condenação pelo crime - é algo exterior a ele, porém, só isto. Depois deste momento, toda a história está nas mãos de Kimble, que determina o que e como fará. Ele move a história, ao invés de ser movido por ela.
Já os personagens de "Da Vinci", Landgon e Sophie Neveu (Audrey Tautou), não possuem vontade própria. As coisas acontecem a eles, o que os obrigam a agir. São arrastados pelas mãos inábeis do destino (também cognominado de Dan Brown) e não possuem personalidade. São criaturas estéreis, sempre aguardando pela próxima decisão do deus ex machina.
A implausabilidade de certas teorias só convencem os mais desavisados e, para os que ainda caem em tais esdrúxulas teorias conspiratórias, basta assistir a um dos documentários da Discovery Channel sobre o santo graal ou ver alguma das entrevistas de Umberto Eco sobre o assunto.

Os únicos méritos de "O Código Da Vinci" são estimular o gosto pelo estudo da História e pela figura de Jesus, mas isto somente se a encararmos como obra ficcional. Quando se mistura com a realidade, "Da Vinci" presta um enorme, porém reversível, desfavor.

quarta-feira, maio 31, 2006

Ladrão de Diamantes (2004)



Há filmes que te surpreendem...

Na maioria das vezes, a surpresa é catastrófica. Espera-se assistir a um filme maravilhoso, talvez um clássico hodierno instantâneo e que, no final das contas, não passa de uma grande porcaria.
Raras vezes, contudo, há aqueles filmes que te surpreendem positivamente. Espera-se mais um lixo da abundante produtora de superficialidades que é Hollywood, e o resultado acaba sendo, senão excelente, ao menos satisfatório.

"Ladrão de Diamantes" faz parte deste segundo caso.

Max Burdett (Pierce Brosnan) e Lola Cirillo (Salma Hayek) são dois ladrões de diamantes aposentados. Para fugir de seu último grande furto, os dois vão morar numa ilha caribenha. Mas, após alguns anos de tediosa tranquilidade, Max é obrigado a lidar com um agente do FBI que busca desforra ao haver sido humilhado pela dupla.
Tendo certeza que Max está tramando um novo grande roubo, o agente Stanley Lloyd (Woody Harrelson) se alia a uma policial local para ficar na cola dos ladrões.

Este filme lembra muito as comédias de suspense intepretadas por Cary Grant, com um humor ligeiro e, o mais importante, às vezes engraçado. A trama se desenvolve de maneira carnavalesca e inusitada, começando com a aposentadoria de Max e Lola até o momento em que o ladrão tenta resistir a tentação de roubar seu último valioso diamante.
Mais do que uma abordagem criminal, sobre os planos e estratégias para roubar um item superprotegido, "Ladrão de Diamantes" enfoca a dualidade masculina entre perseguir seus objetivos profissionais (supondo que furto seja uma profissão) e desenvolver seus vínculos afetivos, já que Lola não quer que seu amado continue se arriscando.

Uma comédia despretensiosa e agradável, com reviravoltas que não chegam a surpreender, mas que dão um charme à obra.
"Ladrão de Diamantes" não é um filme imprescindível para os amantes de cinema, mas é diversão garantida para, nestes dias frios, assistir debaixo das cobertas comendo pipoca.

domingo, abril 23, 2006

Old Boy (2004)



Qual a relação entre um brutal filme coreano e a obra de Franz Kafka?

Dae Su, um pai de família, é, sem saber porque, enclausurado por quinze anos num quarto, com acesso apenas a uma televisão. Durante este tempo, sua esposa é assassinada e sua filha desaparece.
Do mesmo modo abrupto pelo qual ele foi encarcerado, ele também é devolvido ao mundo.
A procura por respostas é o tema de "Old Boy".

Para tanto, Dae Su está disposto a espancar, torturar, matar quem quer que seja para descobrir quem é o responsável por sua desdita.
Assim como Joseph K., de "O Processo", Dae Su não sabe contra quem deve lutar, mas apenas que precisa resistir, que precisa obter uma solução, até seu último suspiro.
Vagando pelas ruas da cidade, desconfiando de todos, até mesmo da única pessoa no mundo que resolveu ajudá-lo - a cozinheira Mido -, Dae Su tem apenas cinco dias para juntar todas as peças de um imenso quebra-cabeças.

O ritmo do filme é frenético e atordoante. Intercalando sangrentas lutas e momentos de humor negro, "Old Boy" é, sem dúvida, uma obra extraordinária. Violando todos os princípios narrativos que tornam o cinema contemporâneo previsível, "Old Boy" opta por escolhas difíceis, tabuísticas, incrivelmente lúcidas para resolver os conflitos.
Há reviravoltas, mas nada tão inverossímil que nos faça questionar: "De onde veio isto?"

Apesar da estranheza do enredo, "Old Boy" é extremamente realista.

Esta versão oriental de Kafka é uma obrigação a todos que se deliciam com uma boa trama.

domingo, abril 16, 2006

Crash - No Limite (2004)


Assistir a "Crash" deveria ser quase uma obrigação.
Poucas vezes temos a oportunidade de ver um filme que atinge sua meta sem tematizá-la.
A problemática do preconceito está presente em cada cena, estapeando-nos na cara, mas, em momento algum, ela é verbalizada.

A primeira comparação a ser feita é com o magnífico roteiro de Paul Thomas Anderson para "Magnólia". Tanto neste filme quanto em "Crash", nós nos enveredamos num labirinto de vidas e de frustrações. Pessoas completamente diferentes, mergulhadas no mesmo mundo, tocando-se cotidianamente, confrontando-se, compreendendo-se.

Em "Magnólia", Anderson nos apresenta o afastamento, o distanciamento.
Em "Crash", Paul Haggis nos apresenta a proximidade, os acidentes (de onde vem o título) que nos forçam a reconhecer o outro como pertencente ao mesmo universo que nós.

A trama é fragmentada em vários núcleos narrativos, todos imersos em sua apreensão de mundo e em seus preconceitos próprios.
Há o caucasiano com preconceito em relação aos negros e latinos; há os negros com preconceitos dos brancos e dos próprios negros; há árabes (categorização que inclui, no filme, todos os muçulmanos, mesmo que a maioria islâmica do mundo não seja falante do árabe ou nascida na Arábia Saudita) com preconceito dos latinos; há os chineses, os porto-riquenhos, os tailandeses, os pobres, os ricos, os bandidos, os policiais e há mesmo aqueles que nem possuem classificação.

"Crash" demonstra, com um realismo surpreendente, que preconceito e discriminação não é um "privilégio" dos brancos burgueses, que todos nós, independentes de raça e classe social, já possuímos uma pré-compreensão do mundo que nos circunda e que é através dela que escolhemos nossos círculos de amizade, os ambientes que freqüentamos e as pessoas que costumamos evitar. Não se trata de algo racional, fundamentado em teorias eugênicas, mas sim a própria constituição nossa, enquanto seres humanos, de julgar o próximo e lidar com ele através deste julgamento.

Há um desamparo terrível nesta constatação, como se, para esta falta de tolerância, não houvesse solução. Mas a arte - mesmo que não tenha de possuir esta atribuição - é um modo de voltarmos nosso olhar sobre nós mesmos e percebermos que também fazemos parte deste ciclo de ódio, que, se um filme como "Crash" existe, é porque nós permitimos e, mais do que isto, contribuímos que para chegássemos a este ponto.

Acredita-se que o filme de Haggis simboliza a América pós-11-de-setembro. Nada mais equivocado do que isto. O filme de Haggis simboliza a humanidade, desde seus primórdios pré-históricos até hoje. Nossa época, longe de ser a fundadora do preconceito, apenas o acentua dia após dia.

Infelizmente, "Crash" é a história do nosso cotidiano...

Felizmente, o filme é belo!

sexta-feira, abril 14, 2006

O Jardineiro Fiel (2005)



2006 foi o ano em que Hollywood fingiu estar preocupada com questões sociais.
Falaram sobre preconceitos (Crash, Brokeback Mountain, Transamerica, Capote...), sobre censura e liberdade de expressão (Boa Noite e Boa Sorte...) e sobre grandes corporações que, através da exploração, oprimem povos de países e continentes atrasados (Syriana...).
"O Jardineiro Fiel", filme dirigido por Fernando Meirelles, nosso brasileiro notório do momento - ao lado do astronauta - , se inclui na última classificação.
Por detrás de uma trama amorosa, de uma busca obsessiva, e compreensível, por respostas, há uma conspiração internacional envolvendo a indústria farmacêutica.
Justin Quayle (Ralph Fiennes) é integrante de uma missão diplomática no Quênia. Um homem austero, polido e sem emoções evidentes é confrontado à sua contraparte ativa, visionária e empreendedora, sua esposa Tessa (Rachel Weisz). Esta, ao descobrir o envolvimento de uma poderosa empresa farmacêutica em diabólicos testes realizados em pobres coitados quenianos, é assassinada.
Restam a Justin duas alternativas medonhas: esquecer o assunto e tocar sua vidinha medíocre adiante, ou investigar o caso, honrar com a memória de sua esposa, mesmo que isto custe sua própria vida.
É óbvio que, se Justin optasse pela primeira escolha, mal haveria trama para rechear as quase duas horas de filme.
Ao encarar inimigos influentes, anônimos, ocultos em escritórios suntuosos em edifícios distantes da pobreza tremenda da África, Justin afunda-se gradualmente num lodaçal muito maior do que suas forças podem superar. Seguindo a trilha já percorrida por Tessa, Justin desafia o perigo, sendo levado às conseqüências últimas.
Todavia, "O Jardineiro Fiel" exagera.
Começa bem, com uma trama envolvente, aos moldes das versões cinematográficas de John Grisham (e estas parecem ter se inspirado, de algum modo, em Le Carré), e repleto de reviralvoltas a nos deixar aturdidos. A segunda metade, contudo, não passa de um panfleto enfadonho e ineficaz.
Nada contra o cinema defender uma causa, ainda mais quando se trata de uma boa causa. No entanto, a linguagem do cinema ficcional é distinta do documental. As imagens da pobreza africana, dos maus tratos, da exploração são muito mais enfáticas, na ficção, do que longos discursos questionando a idoneidade da indústria farmacêutica ou as segundas intenções dos corpos diplomáticos europeus ou norte-americanos.
"O Jardineiro Fiel" menospreza a inteligência do espectador, não permitindo que este pense e tire suas próprias conclusões. O filme propõe uma questão, porém, para seu demérito, também apresenta uma resposta. Não impele o espectador a retornar para casa e questionar, a ler artigos em jornais ou revistas, a procurar na internet sobre o caso. A investigação feita por Justin não deve ser repetida por nós; simplesmente devemos engolir as conclusões do filme, e ponto final.
Para quem deseja assistir um documentário sobre o assunto (a exploração da indústria farmacêutica na África), fica então uma sugestão, na qual são apresentados argumentos e contra-argumentos e para que as mentes mais questionadoras possam cavoucar suas próprias respostas: "A Origem da AIDS".
Não é tão fácil de ser encontrado nas locadoras quanto "O Jardineiro Fiel", mas certamente é menos pretensioso.

segunda-feira, março 27, 2006

Rocky - Uma série sobre ascensão e queda


Desde criança, há algo que que me fascina nos filmes da série "Rocky, um lutador".
Não sei se é a capacidade inacreditável do protagonista em levar pancada e ainda permanecer de pé, ou se é a imbelicidade ingênua do pugilista que o faz, quase como Forest Gump, ascender na vida sem se dar conta disto, ou se é simplesmente o realismo que, ao contrário da inverossimilhança das lutas, arrasta um pobre coitado que esmurrava pedaços de carne num açougue ao estrelato, mas que também o afunda novamente na sarjeta quando a fama se desvanece.

Rocky é a própria história da indústria cultural.
No primeiro filme, vemos Apollo Creed, um boxeador campeão, querendo divulgar sua carreira ao escolher um pugilista novato e inexperiente para disputar seu cinturão.
Rocky é um daquelas centenas de rapazes pobres que sonham com uma oportunidade. Num dos guetos da Filadélfia, é treinado pelo boxeador aposentado Mickey, que vê em Rocky seu Mesmo refletido.
Não é difícil transpor esta trama para os milhares de talentos futebolísticos que chutam meias em nossas favelas, mas, como toda oportunidade criada pela indústria cultural, apenas um é escolhido. O restante terá de amargar socos em pedaços de carnes ou chutes em bolas de meia.

Contra todas as expectativas, Rocky tem um desempenho incrível na luta contra Apollo e, apesar de todo o mundo considerar a luta como um empate, os juízes decidem em favor do campeão Apollo. Assim termina o primeiro filme, num misto de decepção (Rocky não vence) e de satisfação (Rocky não foi massacrado no ringue).

O filme, cujo roteiro foi escrito pelo próprio Sylvester Stallone, foi um sucesso imediato nos Estados Unidos, isto lá pelos idos de 1970.
A história sobre a indústria cultural torna-se, então, parte desta indústria. Na cola do sucesso de "Rocky, um Lutador" surge "Rocky, a Revanche", que não passa de um repeteco literal do primeiro: o clamor popular faz com que Apollo peça uma revanche contra Rocky, para provar que sua vitória foi autêntica e não apenas favorecimento por parte dos juízes. Tudo se repete nos mínimos detalhes, inclusive as famosas cenas de treinamento de Rocky, no qual ele corre pelas ruas da Filadélfia e escala, fatual e metaforicamente, as escadarias da vitória.

Só que desta vez, Rocky ganha. Não há margem para dúvidas e ele se torna uma estrela do boxe.

"Rocky 3, o desafio supremo" é lançado, contando a história de Rocky sob a ótica inversa. Agora, é ele quem deve lutar contra um novato, o furioso Clubber Lang, que deseja a todo custo provar que Rocky é uma fraude, que todas suas lutas foram armadas e que ele não merece o título de campeão.
E não é que Lang tinha razão?

O que Rocky mais sabia fazer era apanhar (ele tinha um talento nato para isto) e, quando o oponente já estava exausto, bastava um de seus cruzados de canhota para derrubá-lo.
Mas com Lang as coisas não foram tão fáceis e Rocky teve de amargar sua principal derrota. Ofuscado pelo sucesso, não se concentrando no treinamento, gastando maior parte de seu tempo fazendo propagandas comerciais, o protagonista não era páreo para seu ávido oponente.
É sua vez, então, de pedir uma revanche. Com o paradoxal auxílio de Apollo, Rocky treina pesadamente e consegue reaver seu título.

Após haver vencido todos os desafios, faltava para Rocky o mais difícil de todos, derrotar a máquina russa Drago, a qual havia posto um fim à carreira e à vida de Apollo numa luta anterior. Uma mensagem clara sobre a postura dos EUA na Guerra Fria.
O maniqueísmo deste quarto filme é evidente. Rocky é popular, é amado, é gente boa; seu único defeito é não saber articular bem as palavras, mas esta última é mais uma característica do ator do que propriamente do personagem.
Já Drago, é antipático, odiado, frio, mal possui falas, é quase um robô sempre a cumprir ordens. Somos obrigados a detestá-lo, não há escolhas para nós simpáticos capitalistas ocidentais senão desprezar o taciturno comuna oriental. Não há escolha!

E o que parecia ser impossível demonstra ser possível. Novamente, após duro treinamento, Rocky derrota o monstro russo.

Mas a realidade bate à cara do pugilista.
Derrotar a União Soviética expôs, incrivelmente, as próprias mazelas norte-americanas. Sem uma outra superpotência a derrotar, os EUA foram obrigados a voltar seus olhos para o interior de seu próprio país e a perceber que a vida estava longe de ser maravilhosa como o American Way of Life pregava aos quatro ventos.

A derrota da URSS é, para Rocky, sua própria derrocada, o fim de sua carreira.
Sem poder mais lutar, o protagonista decide se tornar treinador e descobre um jovem com um potencial incrível. Mas este, longe de manter laços de fidelidade para com Rocky, tais quais ele manteve para com Mickey, quando vê a oportunidade surgir, abandona seu treinador e escora-se num empresário bem-sucedido.
Rocky encerra sua brilhante carreira vivendo novamente no gueto, no ponto onde tudo começou.

Esta pentalogia é um clássico exemplo de ascensão e queda de um homem público. Compará-la a "Cidadão Kane" seria um exagero, mas ambos tratam de indivíduos que atingem o topo do mundo, e aos quais o destino, além de uma certa dose de falta de previsão, lançaram novamente ao chão (Rocky, de fato; Kane, moralmente).

Além disso, Rocky é um panorama da América nos quinze anos que separam as cinco produções (de 1976 a 1990). Compreendê-lo é constatar que o Ocidente não venceu. Compreendê-lo é perceber que ainda estamos no ponto que começamos.

Compreendê-lo é verificar que tudo que está no topo, um dia descerá novamente.

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quinta-feira, março 02, 2006

A Marcha dos Pinguins (2005)


"A Marcha dos Pinguins" causou comoção nos Estados Unidos, a tal de ponto de se tornar o segundo documentário mais visto naquele país, perdendo apenas para "Fahrenheit 11/9".
A história seria incrível, se não fosse verídica e não ocorresse todo ano no Pólo Sul.
Durante o inverno, os pinguins imperadores cruzam centenas de quilômetros por entre as geleiras para procriarem. Como se não bastasse este exaustivo êxodo, os pinguins são obrigados a percorreram algumas vezes este percurso: primeiro para acasalarem, depois para as fêmeas se alimentarem, para os machos encherem os buchos e, por fim, já com os filhotes, rumo ao mar para desfrutarem do verão.
As imagens do continente gelado são belíssimas e chocantes. As cenas dos milhares de pinguins enfileirados em meio ao gelo são deslumbrantes. Mas, mais do que isto, a sensilidade e a coragem do diretor Luc Jacquet e sua equipe para encararem este desafio são impressionantes.

Muito se comentou sobre a antropomorfização dos pinguins, através de narrações humanizadas, dotando-os de objetivos semelhantes aos nossos, de sentimentos de ternura e amor, de uma distorção dos instintos de sobrevivência dos animais, que em nada se assemelham aos nossos projetos deliberados e racionais.
Mais do que subestimar o instinto dos animais, tais comentários superestimam a racionalidade humana. Ignoram que boa parte de nossos comportamentos derivam de uma memória primitiva que nos condiciona também à sobrevivência. A única diferença, talvez, é que nós temos consciência de nossas próprias ações e nos acreditamos superiores aos demais animais devido a esta característica. É claro que uma narrativa de caráter humano nos aproxima ainda mais da luta que os pinguins empreendem contra um frio absurdo, mas, independemente dela, não podemos evitar de nos emocionar com o milagre da natureza, da qual fazemos parte e à qual insistimos em destruir.
Para quem assistiu a "Fernão Capelo Gaivota" (ou leu o livro), a comparação é inevitável. No entanto, enquanto que neste o pássaro anseia por liberdade e por descobrir todos os segredos do vôo, no outro, pássaros que não podem voar não desejam a liberdade, mas sim perpetuar aquele ritual. Instintivamente, os pinguins imperadores criam outros para que, um dia, seus filhotes passem pelo mesmo perrenque que eles passaram. É a crueldade mecânica da natureza que impele as gerações adiante, sem se importar com os que tombam no caminho.

Por ser, ao menos conceitualmente, um documentário, "A Marcha dos Pinguis" carece de um roteiro dinâmico como os de animações da Disney. Arranca risos e exclamações de espanto, mas, em alguns momentos, chega a ser enfadonho.

Certamente um dos que poderia entrar para a lista da "Sessão da Tarde", ao lado de Benjie, Lassie, "Free Willy" e Flipper.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Ponto Final - Match Point (2005)



Afirmar que Woody Allen é um gênio, uma voz dissidente no panorama americano dominado por Hollywood, um dos poucos roteiristas/diretores que ainda consegue se aprofundar na alma das personagens, não seria uma novidade.
De fato, a trajetória e a filmografia de Allen são invejáveis. Os seus melhores filmes entraram para a história do cinema, ele praticamente criou um gênero único de humor, namorou com a psicanálise e sua própria vida poderia servir de inspiração para um filme. Trazendo ao mundo quase uma obra por ano e desdenhando a festa do Oscar para tocar jazz com sua banda em Nova York, Allen é idolatrado por muitos e odiado por outro tanto.

Falemos então daquilo que não é tão óbvio.
"Ponto Final - Match Point" pertence àquelas obras de Allen das quais ele não atua como protagonista. Algo a favor de "Ponto Final", pois o estilo verborrágico de atuação de Woody Allen não costuma agradar a muitos espectadores.
A trama de seu mais recente filme é de uma sobriedade inacreditável. Um jogador de tênis aposentado, Chris Wilton (Jonathan Rhys-Meyers), muda-se para Londres e encontra emprego como treinador de tênis num clube da high-society britânica.
Lá, ele conhece o playboy Tom Hewett (Mathew Goode) e eles se tornam amigos. Ao freqüentar a casa de campo da família Hewett, Chris se envolve com a irmã de Tom, a amável porém insossa Chloe (Emily Mortimer). No entanto, a atenção de Chris direciona-se mais à noiva de Tom, a americana Nola Rice (Scarlett Johansson), que, a princípio, não quer nada com ele.

"Ponto Final - Match Point" é a história de uma escalada social vertiginosa. De simples treinador de tênis, Chris, ao se casar com Chloe, passa a trabalhar nas empresas de seu milionário sogro. Uma vida de conforto e luxo se opõe ao desejo sexual frenético que ele nutre pela cunhada. Um dilema ao qual o protagonista se recusa a resolver.
O filme possui uma série de atributos que o diferenciam das produções anteriores de Woody Allen. O primeiro deles é o simples fato de ter sido gravado na Inglaterra, certamente um ambiente completamente diverso do mundo judaico-burguês nova-iorquino retratado à exaustão por Allen. O mergulho naquele universo aristocrático, polido e blasé de Londres contrasta com a paixão entre o tenista irlandês e a atriz sexy americana. Além disso, outro aspecto vital da força do enredo foi a recusa de Allen em psicologizar suas personagens (hábito que ele manteve durante longos anos). Ao invés de explicar as frustrações, as neuroses, as dúvidas, Allen focalizou as expressões emotivas de Chris e Nola. Não há explicações nem verbalizações, apenas arroubos eróticos e uma necessidade visceral de transgressão em meio a frieza londrina.
As referências a "Crime e Castigo" de Dostoievski acabam antecipando o desfecho surpreendente, na qual a trama de paixão se transforma em desgraça e potencial expiação. Mas Allen é habilidoso o suficiente para plantar as pistas certas de maneira a nos fazer acreditar num determinado resultado. No entanto, como a primeira cena do filme indica, o fator mais importante na vida é, às vezes, a sorte.
Não há peripécias no enredo, mesmo assim o filme é incrivelmente original. Todas as conseqüências possuem uma causa, e podemos acompanhar gradativamente a insustentabilidade da situação derivada de uma paixão proibida.

"Ponto Final - Match Point" é um filme sobre escolhas, ambição, paixão e, acima de tudo, a demonstração de que Allen pode conquistar mesmo aqueles que odeiam seu trabalho.

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domingo, fevereiro 05, 2006

O Segredo de Brokeback Mountain (2005)



Em 1963, ano em que se inicia a história de "Brokeback Mountain", os Estados Unidos ainda não haviam mergulhado na onda da revolução sexual. Se bem que no Wyomming a tal revolução jamais deve ter chegado.
Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal) se conhecem após serem contratados para pastorearem ovelhas na Montanha Brokeback. O isolamento e uma coexistência quase matrimonial os aproxima, fazendo com que, numa fatídica noite gelada, Ennis e Jack se relacionem sexualmente. A trama de "Brokeback" se desenrola por mais de um vintênio, período no qual tanto Ennis quanto Jack são obrigados a esconder sua homossexualidade e revestirem-se de uma carapuça de vaqueiros machões.
O entusiasmo com o qual esse filme foi recebido, ganhador de três Globos de Ouro e provável ganhador dos Oscars de Melhor Filme e Melhor Diretor, representa duas mudanças importantes:

1 - O homossexualismo está deixando de ser encarado como uma aberração, como pecado, como algo a ser estirpado da sociedade. Mais do que nunca, as pessoas estão revendo seus conceitos e percebendo que a homossexualidade sempre existiu e, nas épocas em que aparentava não existir, era porque, devido ao preconceito, tinha de ser velado.

2 - Que o cinema também está disposto a pôr de lado seus juízos moralistas (principalmente o puritanismo norte-americano) e deixar de retratar o homossexualismo esterotipadamente. Comédias ou Tragédias (no sentido mais exato dos termos) tendem a mostrar os dois extremos do mundo gay, seja a bicha-louca ou a drag queen ("Priscila, A Rainha do Deserto", "Para Wong Fu, Obrigada por Tudo, Julie Newmar"), completamente fora dos padrões sociais vigentes, ou o homossexual, seja homem ou mulher, transtornado, socialmente inaceito, oprimido, cujo único desfecho é, inevitavelmente, a desgraça ("Meninos Não Choram", "Monster: Desejo Assassino", "Filadélfia").

Não que "Brokeback Mountain" faça do homossexualismo um universo maravilhoso, contudo, o modo como Ang Lee escolheu para contar essa história, resultado de uma incrível sutileza e tato, surpreende. Tamanha é a naturalidade com a qual o tema é apresentado, que poderia se tratar de um romance adúltero heterossexual.
De fato, se não fosse pelo elemento gay, o que ainda hoje em dia é chocante e causa estupor, esse filme seria trivial e passaria desapercebido. Porém, por pisar num solo relativamente arenoso e quase intocável, "Brokeback" tem se tornando um fenômeno de público e de crítica.
Certamente será uma daquelas obras que dentro de dez ou quinze anos, as pessoas olharão para trás e pensarão: "Mas por que um filme desses causou tanta comoção?"

Outro fator surpreendente é a própria presença de Ang Lee na direção. Como um chinês, que dirigiu filmes épicos em sua pátria (como "O Tigre e o Dragão"), conseguiria apreender o que se passa no coração da América?

Todavia, a nacionalidade do diretor provou ser o menor dos problemas e, talvez, pelo fato mesmo de ser um estrangeiro, ele pôde perceber com sensibilidade essa mudança sexual e comportamental que tem ocorrido lentamente nos últimos vinte ou trinta anos no Ocidente.
Como quase tudo que envolve preconceito, o antagonista não se trata de um indivíduo somente, mas de toda uma construção cultural, que define o que é ou não permitido. Em "Brokeback Mountain", o inimigo é a sociedade, mas, acima de tudo, é o preconceito que os próprios personagens trazem dentro de si, são eles que não se permitem ser como são.

O filme de Lee é um pequeno passo na luta contra o preconceito e, possivelmente, nem seja um dos passos mais relevantes.


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sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Caçadores de Mentes (2005)



A proposta era interessante:
Sete agentes do FBI em treinamento são enviados a uma ilha para realizarem uma simulação - uma caçada a um assassino em série denominado "the puppeteer" (o titereiro).
No entanto, o que era para ser um teste, acaba por se tornar real demais para seus participantes e, um a um, os agentes são mortos.
Há um quê de "O Caso dos Dez Negrinhos" de Agatha Christie, mas as coincidências terminam aí. Logo o filme descamba para o inverossímil e põe tudo a perder.
"Caçadores de Mentes" é o típico filme que se mune de um ou dois atores notórios (neste caso Val Kilmer e Christian Slater) somente para dar algum crédito ao filme, mesmo que os papéis deles sejam irrisórios e mais do que coadjuvantes.
Há um mote entre os escritores de mistério de que o autor não deve trapacear o leitor, ou seja, as pistas plantadas no decorrer da trama devem ser suficientes para que o leitor/espectador possa tirar suas próprias conclusões e deduzir quem é o assassino. "Caçadores de Mentes", assim como seu primo cult "Jogos Mortais", abusa de recursos simplistas, fazendo com que o espectador atire para todos os lados, numa tola tentativa de adivinhar a identidade do criminoso. E, no fundo, qualquer esforço não passa de adivinhação, pois, ao revelar o assassino, a seleção de provas para condená-lo serviria para qualquer um dos outros personagens. Não acrescentam nada e contrariam a lógica dedutiva. São apenas peripécias para contrariar o espectador e fazê-lo, no fim, exclamar:
"Mas jamais pensei que fosse ele!"

Uma coleção de mortes absurdas coroam "Caçadores de Mentes" como um daqueles títulos policiais insossos que um dia, certamente, passará no "Supercine", nos sábados à noite da Rede Globo.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

O Último Matador (1996)


Durante os conturbados anos 20, em meio à recessão norte-americana, John Smith (Bruce Willis), um pistoleiro de aluguel, refugia-se de seu passado em Jericó, uma cidadezinha texana quase na fronteira com o México.
Uma guerra entre gangues rivais, de um lado italianos e de outro irlandeses, pelo controle do tráfico de bebida, violando a lei seca, faz com que John reveja seus princípios e utilize seu incrível dom de matar para algo além de dinheiro.
A trama pode aparentar ser mais um daqueles thrillers que se tornaram a marca registrada de Bruce Willis. No entanto, "O Último Matador" possui uma série de diferenciais:

- Já em 1996, o clima noir dessa obra antecipa o papel que Willis viria a fazer em "Sin City". O tom testemunhal, com longas narrações, atrai o espectador para o mundo agressivo e sem esperança de John Smith;
- é quase um filme de faroeste, porém com uma ambientação sui generis. A pequena Jericó, uma cidade fantasma, aproxima-se das villas mexicanas, regiões sem lei e onde a justiça é aplicada a bala. Os tons pardos, a fotografia empoeirada, a sujeira e o sangue são presenças constantes no filme;
- por fim, e possivelmente o maior trunfo de "O Último Matador", é o roteiro magnífico, assinado por Akira Kurosawa e Ryuzo Kikushima.

É curioso que um filme tão bem produzido seja considerado como uma obra menor na filmografia de Willis, principalmente tendo em conta os altos e baixos na carreira deste ator.
Apesar de violações em leis básicas das Física, como pessoas voando após serem baleadas (defeito que se extende a muitos outros filmes hollywoodianos), "O Último Matador" mantém um realismo grotesco do início ao fim.
Vale destacar também a atuação de Christopher Walken, que morre de maneira estúpida, mas que possui uma presença brilhante na tela.
Um filme brutal e instigante.

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Moça com Brinco de Pérola (2003)



Em sua "República", Platão afirma que a arte está afastada três graus das idéias.
As idéias elas mesmas estão em primeiro grau; a obra dos artesãos, por ser cópia das idéias, estão em segundo; e a arte, por ser cópia da cópia das idéias, está em terceiro grau.

Tese que "Moça com Brinco de Pérola" parece querer contradizer.
A história se baseia na vida do pintor holandês Johannes Vermeer (interpretado por Colin Firth), o maior expoente da pintura batava depois de Rembrandt. O filme retrata o sutil relacionamento entre o artista e Griet (Scarlett Johansson), sua criada.
É difícil compreender a alquimia de um artista com sua obra e com o ambiente que o circunda, mas "Moça com Brinco de Pérola" capta com maestria o universo de beleza da arte.
Uma fotografia perfeita, brincando com o jogo de luzes e sombras que caracteriza a pintura holandeza do século XVII, mesclada com a beleza puritana de Johansson é a certeza de um mergulho no Belo.
Filmes históricos sempre são facas de dois gumes, pois sempre que se fala em passado - ainda mais de um passado remoto -, vaga-se ao sabor de interpretações. A escolha de Griet como protagonista, ao invés de Vermeer, humaniza a trama e aproxima o espectador do mundo esquecido do povão, relegado aos porões da aristocracia e à tavernas imundas.
As contradições entre ignorância e sensibilidade são reduzidas quando uma mera criada consegue apreender o ofício de seu mestre; quando pessoas supostamente cultas vivem à margem da genialidade; quando o coração de um artista, pelo intermédio de seu fazer, consegue acessar o coração de outra pessoa.

Um filme inspirado.