domingo, novembro 19, 2006

Borat (2006)




O jornalista cazaque Borat Sagdyiev é enviado aos EUA para realizar um intercâmbio cultural, com a proposta de aperfeiçoar seu magnífico país.
A idéia é despretensiosa e poderia muito bem se enquadrar num filme sério, documental ou dramático; mas "Borat" é o extremo oposto de tudo isto, com exceção do caráter pseudo-documental.
O intercâmbio cultural EUA-Cazaquistão é, na verdade, a descoberta de que os valores sempre herdados dos norte-americanos não são, nem devem ser, valores universais. A chegada de Borat é a constatação de que as coisas podem ser diferentes e, mais do que isto, que o diferente é realmente muito engraçado.
O Cazaquistão de Borat não é um país fatual, poderia ser o Uzbequistão, alguma ilha da Polinésia ou até mesmo o Brasil, não importa, o que Borat tenta nos mostrar é uma nova visão, completamente revolucionária, de como tudo poderia ser diferente, para pior ou melhor. O choque cultural entre o jornalista, repleto de preconceitos, e grupos de feministas, famílias "de bem" sulistas, negros em áreas pobres dos EUA, judeus, religiosos é brutalmente cômico. Ele é aquele rapaz sem noção alguma, sem educação, sem limites e, pior do que tudo, que não tem consciência do seu deslocamento.
Seguindo a linha dos filmes contra os EUA, o comediante Sacha Baron Cohen ataca, por sua vez, não a política norte-americana, mas sua moral hipócrita, preconceituosa e xenófoba.
Incrivelmente, "Borat" (cujo título completo é "Apredizado cultura na América para o benefício da gloriosa nação do Cazaquistão") galgou seu espaço e se tornou o primeiro lugar em bilheteria nos EUA. Talvez uma demonstração de que há vida inteligente no país e que consegue achar graça até mesmo dos patéticos valores que herdou.
Dificilmente se pode prever a recepção deste filme no Brasil, especialmente porque seu ataque possui um alvo específico. Mas, mesmo assim, "Borat" é incrivelmente engraçado e sua falta de "normalidade" seria cômico em qualquer país dito civilizado.
Seguindo o molde dos "road movies", "Borat" questiona quase tudo, menos o paradigma hollywoodiano de três atos: apresentação, confrontação, desfecho. Uma prova de que nem sempre se pode jogar tudo fora.

Babel (2006)




Existem filmes que você sabe que serão bons mesmo antes de tê-los assistido. Este é o caso de "Babel".
Qual é a relação entre pastores marroquinos, uma família norte-americana, imigrantes mexicanos e uma adolescente surdo-muda japonesa?
Como em "21 gramas", o diretor mexicano Alejandro González Iñarritu abusa destas conexões mirabolantes e implícitas, as quais, acidentalmente, conduzem a desfechos terríveis.
Uma família de pastores de cabras, numa região árida e pobre do Marrocos, compra um rifle com a intuito de espantar os chacais que estão dizimando o rebanho. Acidentalmente, eles disparam contra um ônibus de turismo e atingem Susan (Cate Blanchet), esposa de Richard (Brad Pitt). O governo dos EUA imediatamente associa este incidente com um atentado terrorista, criando comoção mundial e dificultando o resgate de Susan.
Esta poderia ser considerada como a trama principal de "Babel". Porém, sem estar em menor grau de importância, há a história de Amelia, a babá dos filhos do casal Susan e Richard, que, não tendo quem cuidar das crianças, leva-as consigo para o México, para o casamento de seu filho; no Japão, Chieco, uma adolescente frustrada por não ter namorado, complexada por sua deficiência auditiva, procura freneticamente por um parceiro que queira tirar sua virgindade; por fim, o drama da família marroquina, desesperada pela culpa do disparo e pelo medo da punição. Assim como o título sugere, apontando para sua proximidade com a fábula bíblica da Torre de Babel, construída pelos homens para se aproximarem de Deus e como este, enfurecido com a soberbia dos homens, decidiu confundi-los, fazendo-os falar idiomas diferentes, para que não pudessem se entender e concluir o intento. "Babel" é uma Babel de idiomas, quase inteiramente legendado (fato comum no Brasil, mas raro nos EUA), traduzindo marroquino, espanhol e japonês. Se considerarmos como verídica a fábula, o filme de Iñarritu nos sugere que até hoje, sabe lá quantos mil anos depois, ainda não conseguimos nos entender, ainda estamos perdidos em meio a tamanhas diferenças, lingüísticas, culturais e políticas.
"Babel" é um filme extraordinário, daquela safra de produções que sutilmente apresenta suas posições, não como defesa de tese, mas mesclada com as expectativas e frustrações humanas. É através dos atos humanos que nossas fraquezas transparecem e atos inocentes e não-intencionais acabam se tornando, como na teoria do caos, eventos catastróficos e incontroláveis.
O filme de Iñarritu é uma defesa, ao mesmo tempo que repleto de melancolia, das diferenças. Simplesmente um dos melhores filmes de 2006.

sábado, novembro 18, 2006

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001)




"Somente a dor é positiva", dizia Schopenhauer. Talvez esta seja a melhor explicação para o grande mistério envolvendo a crítica: por que os críticos preferem malhar um filme ao invés de elogiá-lo?
A crítica deveria ser, a princípio, a análise das partes constituintes de determinado objeto e a avalição de como tais partes se articulam. Porém, comumente, a crítica se desenvolve como a constatação de que a articulação é falha e como o objeto é, por isso, deficiente.
Isto é inevitável. Quando se trata de filmes ruins, além de ser muito mais fácil de se falar sobre eles, há um prazer imanente em atacá-los. "Somente a dor é positiva" e o desprazer que certo filme nos causa é o solo sobre o qual obtemos algum prazer, ao apresentarmos suas falhas.
Talvez seja por isto que demorei tanto tempo para criticar "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain". Assisti a ele umas dez ou doze vezes e sempre me encanto com este filme.
A trama é despretensiosa: Amélie descobre, escondida há quarenta anos, na parede de seu banheiro, uma caixinha de brinquedos. Ela decide que devolverá tal descoberta ao dono e, se isto mudar a vida dele, ela, daquele momento em diante, dedicará sua vida a ajudar as pessoas.
Tudo neste filme é encantador, começando com a intérprete de Amélie (Audrey Tautou), passando pela trilha sonora, pelo roteiro magnífico, pela direção de arte e, principalmente, pela fotografia. "Amélie" é uma obra de arte em último sentido, proporcionando prazer estético pelo maravilhamento que causa. É daqueles filmes que se ama - inclusive chega a ser cultuado - ou se odeia, mas não há quem fique indiferente diante dele.
O diretor Jean-Pierre Jeunet atingiu o ápice de carreira neste filme (até que prove o contrário!); preparou-se para ele em "Delicatessen" e o imitou em "Eterno Amor"; "Alien, A Ressurreição" é um corpo estranho...
É difícil saber se "Amélie" um dia se tornará um clássico do cinema, ainda mais em nossa época, quando tudo é tão efêmero que já nasce ultrapassado, mas, certamente, é uma obra-prima de beleza e encantamento.

domingo, novembro 12, 2006

Pleasantville - A vida em preto e braco (1998)


O enredo não poderia ser mais estúpido:
Dois irmãos, ao brigar pelo controle remoto da TV, David (Tobey Maguire) para assistir a reprise de uma série da década de 50, Jennifer (Reese Whiterspoon) para assistir a um show na MTV com seu ficante, são transportados para o interior daquela boçal série.
No entanto, se o espectador sobreviver aos primeiros quinze minutos e ultrapassar esta historiazinha que poderia pertencer a um filme da Xuxa ou dos Trapalhões, ele será recompensado com um belíssimo desenvolvimento. Posso confessar que este filme está entre um dos meus preferidos pela inteligência dos questionamentos que incita.
"Pleasantville", a cidade fictícia que dá nome ao filme, é perfeita, entendendo-se perfeição como o extremo da moralidade hipócrita que proibe sexo pré-marital, capacidade de reflexão individual, desejo de revoluções e mudanças e liberdade de expressão. Nesta cidade, os casais dormem em camas separadas, os filhos são exemplos para a sociedade, o time de basquete jamais perde, as donas-de-casa estão sempre com o jantar ou os canapés para as visitas prontos e a única função dos bombeiros é resgatar gatos em árvores.

Dois paralelos podem ser traçados desde "Pleasantville - a vida em preto e branco":
O primeiro deles é com o Gênese. Pleasantville é encarada como um paraíso, onde não há pecado e tudo flui em abundância. Todos levam suas vidas numa pacata inconsciência e a existência é "agradável". Todavia, por um ato miraculoso, através da figura do reparador de TVs que dá a David e Jennifer o controle remoto mágico, os dois irmãos começam a modificar a alienada existência da cidade, dotando-a de cores e vida.
Alguns teóricos, principalmente de correntes esotéricas, defendem que o pecado original, aquele que fez com que Adão e Eva fossem expulsos do Paraíso, trata-se do conhecimento do sexo. A "árvore do conhecimento" seria, na verdade, o conhecimento do ato sexual. "Pleasantville" corrabora com esta tese, pois é, através do sexo, instigado por Jennifer (que não era nenhuma santa no mundo real), que as verdadeiras mudanças começam. Ao comerem o fruto proibido, uma série de atitudes muda entre os cidadãos da cidade e, em pouco tempo, o "agradável" cede lugar ao ciúmes, ao adultério, ao medo, à paixão.
O segundo paralelo é com a própria história recente dos EUA, com a revolução artística e sexual da década de 50, quando as fachadas do puritanismo desabaram. O advento do rock'n'roll, dos movimentos libertários e revisionistas mudou a mentalidade de um país preconceituoso e bitolado.
O histórico do diretor, produtor e roteirista Gary Gross não é dos melhores; antes e depois deste filme sua filmografia é inexpressiva. Não é possível saber se ele leu Bataille, Foucault e toda a geração de estruturalistas que põem a sexualidade e a arte em primeiro plano como motores de transformação. Provavelmente não. Mas, inconscientemente, como as personagens de seu filme, Gross atinge um extraordinário patamar de lucidez ao retratar a reação retrógrada de discriminação e censura por parte dos homens "decentes" da cidade.
Mas as mudanças, quando começam, dificilmente podem ser detidas e Pleasantville jamais poderia voltar a ser o que era.
O personagem mais intrigante, ao meu ver, é Bill Johnson (Jeff Daniels), o dono da lanchonete, cuja maior alegria é a expectativa do Natal, quando ele pode pintar a vitrine da lanchonete com temas natalinos. Ele é o chamado do artista, de alguém que possui um novo olhar e, para isso, precisa romper com as normas sociais. Algumas das mais belas cenas do filme envolvem a presença de Bill e David, ambos descobrindo o que é a verdadeira liberdade.
"Pleasantville - a vida em preto e branco" é a prova de que uma má idéia pode ser o germe de uma maravilhosa execução. Um elogio à liberdade e a tolerância. Um conclame ao respeito às diferenças e à necessidade de constante revisão de nossos conceitos. Estimulando-nos a pôr um pouco de cor em nossas existências pacatas.